(*) Por Brenno Birckholz da Silva
Diz o ditado que “uma mentira dita mil vezes se torna verdade”. A frase atribuída a Joseph Goebbels, então ministro da propaganda do odioso regime nazista, traz em si o perigo da perpetuação de notícias fantasiosas no ideário coletivo.
Ir além da superficialidade do senso comum permite oxigenar o debate, aprofundar a discussão crítica e informar a comunidade sobre temas de relevância social. Exemplo disto está nos serviços públicos prestados pelos cartórios extrajudiciais, que apesar de sua relevância essencial à sociedade, ainda são alvo de infundados comentários.
O primeiro dos mitos falaciosos é o de que “cartório só existe no Brasil”. Como contra fatos não há argumentos, convém lastrear a pesquisa em números objetivos:
O infográfico ao lado evidencia métricas pouco difundidas: dentre os países adeptos do sistema jurídico de direito latino (vigente no Brasil), 91 nações possuem cartórios (ANOREG/BR, 2022).
Tampouco se trata de países periféricos ou de pouca relevância político-econômica: 7 entre as 10 economias mais desenvolvidas do mundo (a incluir Alemanha, França, Japão, China, Rússia, Indonésia e Brasil), além de mais de 80% da União Europeia e de três quartos (75%) do grupo das vinte maiores economias do globo (G 20) contemplam a instituição dos cartórios em seu regime jurídico nacional. Não sem razão, portanto, trata-se de um modelo que atende a 2/3 da população mundial.
A segunda das afirmações fantasiosas é a de que as serventias são “herdadas” ou “passadas de pai para filho”. A Constituição Federal de 1988 exige expressamente a realização de concurso público de provas e títulos para a outorga das delegações. Trata-se de um dos concursos mais rígidos do país. Suas inúmeras fases exigem elevado grau de especialização e capacidade técnica dos concursados, franqueando apenas aos investidos de suficiente saber técnico, jurídico e acadêmico o ingresso na função.
Tamanho rigor nos critérios seletivos é benéfico não só à qualidade dos serviços de notas e de registros, como à própria segurança da população atendida. Dados da última pesquisa estatística sobre a satisfação com os serviços públicos elenca os cartórios como a instituição mais confiável por 76% dos brasileiros (DATAFOLHA, 2022), à frente de instituições de reputação e de excelência, como as Forças Armadas e as Polícias Civis e Militares.
Terceiro e último dos considerandos míticos, por fim, remete à economia norte-americana, muito utilizada como parâmetro comparativo para reafirmar a “síndrome de vira-lata” no ideário doméstico nacional. Nos EUA, as profissões de “notário” e de “registrador” são presentes e fazem parte da realidade do país, embora exercidas por figuras diferentes.
Enquanto o ofício dos “notários” é desempenhado por pessoas físicas habilitadas em prova específica, a atividade de “registradores” é realizada por registros imobiliários em consórcio com empresas privadas (as “title company”), responsáveis ainda pela securitização imobiliária da operação, acompanhadas obrigatoriamente (na maioria dos estados americanos) por um advogado.
O resultado comparativo de custos e eficiências registrais entre Brasil e EUA foi compilado em Tese de Doutorado com rígida trilha de auditoria estatística (FARIA, 2022, p. 214), utilizando-se estados de tamanhos, demografias e composições de renda assemelhados (Delaware, nos EUA; e Santa Catarina, no Brasil):
As conclusões foram traduzidas em dados objetivos: a) nos EUA, os custos de transferência de um imóvel avaliado em US$ 50 mil dólares americanos (cerca de R$ 300 mil) foram de aproximadamente US$ 1.624,50, ou 3,2% do valor da negociação; b) no Brasil, idêntica aquisição de imóvel, dotado de mesmo valor, demandaria cerca de US$ 700,52, ou 1,4% do valor transacionado.
Em suma: o valor nos EUA, para idêntica transação, é 228% superior ao brasileiro.
Portanto os cartórios também existem nos EUA. Paradoxalmente, porém, os cartórios brasileiros, além de mais baratos e acessíveis à população, são ainda: mais eficientes (na gestão do tempo) e apresentam índices de satisfação e confiabilidade superiores aos dos pares norte-americanos (na eficácia do serviço prestado) (FARIA, 2022, p. 215).
Em arremate, no Brasil os serviços públicos de notas e registros são responsáveis pela geração de aproximadamente 90 mil empregos diretos, e outros 45 mil postos indiretos de trabalho. Este contingente de colaboradores – extremamente qualificado e capacitado ao exercício de suas funções – é integralmente custeado pelos delegatários de notas e registros, sem qualquer ônus para o Estado (ANOREG/BR, 2022).
Como afirmou o eminente Desembargador Ricardo Dip, o ofício notarial “habita na natureza política dos homens” (DIP, 2009, p. 2). O célebre jurista utilizou frase sofisticada para esclarecer dois fatos simples (e coligados): os seres humanos são naturalmente propensos a conviver em comunidade (“natureza política”), convivência social essa que exige que muitas questões sejam documentadas com a chancela da segurança, pacificando conflitos e evitando brigas e discussões futuras. Eis aí a essencialidade das instituições notariais e registrais para a sociedade.
Tal qual o Direito – ciência orientada à disciplina do convívio (REALE, 2000, p. 63) – também notários e registradores ocupam-se da prevenção de litígios sociais, garantindo à comunidade a chancela da segurança jurídica e da autenticidade nas relações de direito privado.
É uma pena que a segurança jurídica emprestada a cada ato nos cartórios do país “só seja valorizada quando não está presente”, da mesma forma que ocorre com a ausência do oxigênio que respiramos (BACELLAR, 2023).
Para um adquirente de uma unidade imobiliária, por exemplo – que muitas vezes trabalhou a vida toda para angariar seu imóvel próprio – a segurança jurídica é um sentimento de paz e de tranquilidade quanto à sua propriedade. É a certeza de que está agindo conforme a lei, e de ser amparado pelo direito. Essa segurança é tão essencial quanto invisível: sem ela, a convivência social se torna impraticável.
A revisitação conceitual das inúmeras “falácias sociais” sobre notários e registradores pressupõe suficiente maturação doutrinária. A oxigenação do debate principia pela ousadia acadêmica e pelo cotejo com experiências de pares internacionais, que fizeram evoluir a dinâmica dos respectivos sistemas internos, dotados de instituições notariais e registrais de excelência.
É nestes termos que a realidade brasileira atual reclama evolução, e sobretudo conscientização. Assim evitaremos que “uma mentira recontada mil vezes” se torne realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANOREG/BR. Cartórios em Números. 4ª ed. 2022. 162 p.
BACELLAR, Rogério. Cartórios dão segurança jurídica a relações patrimoniais. Disponível em: <www.poder360.com.br/opiniao>. Acesso em: 27 jun. 2023.
DIP, Ricardo Henry Marques. A relevância da atividade notarial frente aos desafios da sociedade moderna. Disponível em: <http://arisp.files.wordpress.com/2007/12/rd-indaiatuba-2009.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2016.
FARIA, Bianca Castellar de. Análise constitucional e econômica do sistema registral imobiliário do brasil e dos estados unidos: segurança jurídica, eficiência e custo. Tese de Doutorado em Direito. UNIVALI e Widener University – Delaware Law School. 2022.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2000.
(*) Brenno Birckholz da Silva
- Professor da Universidade do Extremo Sul do Estado de Santa Catarina (UNESC).
- Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário (USP).
- Ph.D. em Direito Privado pela Université de Bordeaux (França).
- Tabelião Titular do 3º Tabelionato de Notas da Comarca de Maringá.